."Viver é a coisa mais rara do mundo, a maioria das pessoas apenas existe".Oscar Wilde .
Terça-feira, 9 de Outubro de 2007
Barroso - terra magica (Trás os Montes)

Isolada pelas montanhas, barricada atrás de lagos sucessivos, abandonada pelas vias rápidas, envolta em nevoeiro, chuva e neve. A região do Barroso é um território de florestas misteriosas, onde os uivos do lobo não são um mito; de bruxas e feiticeiros que se juntam em encruzilhadas e estranhas. Não é terra para homens, mas também lá existem. É Trás-os-Montes, e não é bem

A região do Barroso é diferente de tudo o que conheço, e até o castelo de Montalegre parece reforçar a atmosfera de conto medieval quando a Torre de Menagem surge a pairar na neblina da manhã. Ou à noite, quando das suas ameias parte o pio de um mocho solitário para as ruas húmidas e desertas. À luz de pleno dia, dissipada que está a névoa, tudo parece retomar o ambiente normal de uma pacata vila de interior. Os pequenos estabelecimentos comerciais animam-se com a chegada de clientes vindos das aldeias vizinhas, enquanto a praça do município é cruzada por homens de chapéu de feltro, em trânsito por causa de papeladas e outros afazeres legais. Pouco depois é a vez de uma torrente de crianças e adolescentes desaguar nas ruas junto às escolas, mal os primeiros autocarros abrem as portas ao ar frio da manhã.

Tal como no longínquo ano de 1273, altura em que obteve o seu primeiro foral, a povoação continua a desenvolver-se a sul do castelo, no alto de um morro com vista para o vale onde corre um Cávado ainda jovem; é como se os seus habitantes quisessem, ainda hoje, escudar-se com o granito da velha torre de uma qualquer iminente invasão espanhola.

A realidade, porém, é bem diferente. As afinidades com as gentes galegas para lá do Larouco são tão antigas quanto a própria fundação da vila e, se recuarmos um pouco mais, vemos até que se trata do mesmo povo. Esta é uma daquelas regiões da Península cuja soberania tardou em definir-se e que, uma vez decidida, nos deixou casos curi osos. Veja-se o exemplo de Tourém, a aldeia mais setentrional do concelho: situa-se no final de um estranho apêndice formado pela linha de fronteira; para lá chegar é preciso percorrer um longo trajecto, subir a um planalto, passar a crista da serra (com marcos fronteiriços de um e outro lado da estrada) e descer ao fundo do vale; as aldeias vizinhas - Requiás, Maus de Salas, Calvos, Paradela, Randín - são todas galegas e fazem- -lhe um cerco quase completo; e se daqui quisermos visitar o povoado lusitano mais próximo, não há como fazer cerca de 12 quilómetros… para trás.

Chegaremos então a Pitões das Júnias, isolada de vizinhos, portugueses ou espanhóis, mas também ela cercada: de um lado pelos possantes cabeços graníticos da Serra do Gerês, do outro pela vastidão do planalto da Mourela, acima dos 1000 metros de altitude.


A história do local remonta ao século XII, época em que foi fundado o mosteiro beneditino de Santa Maria das Júnias, hoje em ruínas. Do conjunto ficou a igreja românica e umas quantas secções da construção monástica, encostadas à ribeira de Campesinho e às fileiras de bétulas que na margem a vão guiando encosta abaixo. É um sítio belíssimo, capaz de levar à contemplação e longas meditações até o mais incrédulo dos homens.

Poucas dezenas de metros e uma cascata a jusante, quando a esta ribeira se junta uma outra chamada de Beredo, mergulhamos num carvalhal antigo onde deambulam alguns dos corços e lobos que existem na região; mas vê- -los exige alguma sorte e muita persistência. Neste lugar, digno da imaginação dos irmãos Grimm, ergueram-se em tempos as casas da Aldeia Velha do Juriz - Sancti Vicencii de Gerez, para usar a terminologia medieval - que certamente testemunharam a passagem e descanso de muitos peregrinos com destino a Santiago de Compostela. A rede de abrigos para os que rumavam àquele santuário era tão eficaz que não deixa de ser curioso verificar que o mosteiro de Júnias, sobranceiro à primitiva aldeia, se encontrava à mesma distância do de Santa Maria de Bouro e ao de Celanova, já na Galiza: uma jornada de 35 quilómetros.

As agrestes giestas e carquejas do planalto dão lugar a uma paisagem mais verdejante, à medida que a altitude amansa para valores mais baixos. Quem segue a estrada até Covelães irá deparar-se com um cenário bem diferente, de vales verdejantes que pendem invariavelmente para o leito de riachos e destes para rios cada vez mais encorpados. Os lameiros são o produto da engenharia hidráulica rural, fruto de anos de experiência e da necessidade de alimentar o gado - base da economia barrosã - durante os meses de Inverno. Julgo que em nenhuma outra parte de Portugal haverá tantos e tão bem concebidos como estes que agora desfilam diante dos meus olhos: são quilómetros e quilómetros de rectângulos viçosos, em socalcos suaves debruados a carvalhos e vidoeiros, milhares de regos de água fresca habilidosamente desviada e conduzida ao local pretendido. E, embora seja o resultado da manipulação humana, é surpreendente observar a diversidade de vida silvestre que este tipo de paisagem consegue sustentar.

Mesmo as albufeiras de algumas barragens, que nesta parte do país existem em número inigualável, parecem concorrer para a improvável simbiose homem/natureza, criando um habitat especialmente apetecível para espécies como a lontra. Um caso particularmente feliz, pela sua localização, mas também pelo seu reduzido tamanho e impacto, é o da barragem de Sezelhe, próxima da aldeia com o mesmo nome. O espelho de água resultante da retenção do rio Cávado desenha-se em curvas tão suaves e integradas na paisagem que mais se assemelha a um lago natural, daqueles que imaginamos mais facilmente num país escandinavo.

Os vidoeiros, no seu inconfundível tronco branco e ramos avermelhados, ajudam à ideia, mas os carvalhos e a silhueta distante da Serra do Larouco devolvem-nos o devaneio a terras bem portuguesas.


Cambezes do Rio é uma aldeia que fica um pouco mais a montante, na margem esquerda do curso de água, que nesta zona leva ainda muita corrente. As suas casas já perderam o aspecto profundamente rústico, de paredes de pedra sobreposta e telhados de colmo, mas ainda lhe sobram alguns exemplares de arquitectura tradicional, como o grande curral que se encontra no largo da fonte. À volta, contudo, parece que o tempo teima em não avançar. Os lameiros continuam a receber a visita diária das características vacas de cornos enormes, acompanhadas pelos donos e um ou outro cão atrevido. Em dias de Inverno é frequente ver os pastores munidos das resistentes capas de burel, feitas numa lã quente e escura, que os protege não só do frio como também dos aguaceiros mais persistentes. Enquanto o gado pasta, mata-se o tempo a tricotar uma peça de lã ou procurando míscaros e outros cogumelos, que por estas bandas são vistos como uma cobiçada iguaria; para os que vivem na vila representam também uma forma de diversão de fim-de-semana, uma espécie de vício incontrolável que começa num carvalhal, de cesto na mão, e acaba quase sempre à volta da mesa com a família e amigos.

Talvez seja a abundância de cogumelos e outros ingredientes naturais, mais a pitada mística da atmosfera nestas paragens, que leva à reunião de bruxas, curandeiros e outros praticantes das medicinas populares em Vilar de Perdizes. Ou a existência, ali bem perto, de gravuras rupestres e vestígios de cidades romanas, como se sabe, pretexto inesgotável para todo o tipo de crenças e lendas.

Indiferentes à agitação anual do congresso, as terras circundantes, para os lados de Meixedo, são de uma calma imensa e relevo suave, de campos em pousio e longos muros de pedra. A estrada é estreita e o seu traçado doce parece brincar nas colinas, abrindo aos olhos renovadas surpresas, a cada curva, a cada lomba. De vez em quando acaba-se o asfalto e entra--se subitamente na calçada em granito de mais um povoado. E lá voltamos a recuar no te mpo: uma junta de bois a ranger em direcção às hortas, um velho cruzeiro conquistado por líquenes, a água gelada que brota da fonte secular, o ténue zumb
ir de currais às moscas, porque o gado saiu logo pela manhã. Serraquinhos é um pouco assim, tal como Arcos e Cervos - as aldeias que se seguem nesta bucólica rota. A unilas, como ladrilhos de um mosaico gigante, vêem-se rectângulos de terra, ora cultivados, ora abandonados, amarelos do cereal seco, ou verde vivo das pastagens, mas sempre demarcados por intermináveis fileiras de calhaus empilhados. Lá no meio, quase invisível, circula também um labirinto de caminhos em terra ligando as casas ao bosque de castanheiros, passando pelo cemitério isolado, depois pelo ribeiro até se perder no monte junto a uma qualquer ermida que só vê gente uma vez ao ano.

Mas o que dá sentido e empresta o próprio nome a toda esta região é algo de que ainda não se falou. A Serra do Barroso não chega aos 1525 metros, nem tem o perfil bem delineado do Larouco; é pouco conhecida e apenas a atravessam umas quantas estradas secundárias, quase sempre desertas, e caminhos que hoje poucos estão para fazer a pé, no entanto, tem uma força tremenda, de paisagens insólitas, de fragas e florestas que se transformam a cada estação, a cada dia, quando mal se vislumbram entre a densa humidade das nuvens ou acordam de branco da noite para o dia; onde correm ribeiros nervosos, que rasgam a encosta em direcções diferentes para acabarem, exaustos, nas águas plácidas da imensa albufeira do Alto Rabagão. Na margem sul deste outro lago artificial encontra-se Vilarinho de Negrões, uma das aldeias mais pitorescas de toda a região, pelo seu casario ainda relativamente preservado e, acima de tudo, por se encontrar sobre uma estreita e bela península - um pedacinho de terra poupado à subida das águas; Vilarinho é assim uma terra que se vê diariamente ao espelho e se distingue à distância pela sua perfeita simetria.

Na calma da manhã é possível observar alguns mergulhões de crista e outras aves aquáticas que aqui costumam passar o Inverno, fugindo aos rigores das latitudes mais a norte; à medida que os primeiros raios de sol vão levantando, o nevoeiro e os vizinhos humanos começam a acordar, afastam-se para uma pequena ilhota deserta formada por u m enorme penedo. Mais uma vez teço comparações um pouco descabidas mas  inevitáveis, quando me vêem à memória imagens de lagos nas terras altas da Escócia - onde tam bém nadam estas aves, onde também se erguem ilhas das águas quietas, onde também há montanhas frias, de contornos suaves. Mas não vale a pena cortar asas à imaginação; afinal, esta é também uma peculiar virtude das terras de Barroso: levar-nos para bem longe sem sairmos daqui tão perto.

Região  de Trás os Montes

   
   
   

 


publicado por AntonioCasteleiro às 00:01
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